quarta-feira, 26 de maio de 2010

Louco

Sempre ele passa
No meio da rua
Sujo e rasgado
Realidade crua
Atrás dele fica
O mau cheiro, o espanto:
- Sai daqui miserável!
Ser humano, garanto
Se todos soubessem
Da insuportável loucura
Teriam pelo louco
Um pouco de ternura

Meninos do mundo

Há sempre uma criança
Na rua ou na esquina
De olhos amedrontados
Vivendo em surdina
Suas vestes maltrapilhas
Descalços são seus pés
Desnutridos e famintos
Marinheiro sem convés
Eles buscam o abrigo
No relento da noite
Cobertos de jornais
Curtem chuva de açoite
São crianças ou animais?
Às vezes me confundo
Meu Deus o que fazer
Com os meninos do mundo?

Flor e dor

Vejo a dor sobre o muro
A balançar com o vento
Houve dias escuros
E de grande sofrimento
Entre mim e a flor
Eu só enxergava o muro

Miséria

Na calçada da igreja
Uma mulher preta
Amamentava um filho preto
Havia próximo a eles
Um saco de lixo preto
Tudo se confundia
Em uma só cor
Em uma só dor
Em ausência de amor
Não pude fazer nada
Para colorir um quadro tão triste
Pintado com cores escuras
Da miséria humana

Insana idade

É sempre ele
Que vaga pelas ruas
Alheio e sujo
Nas viradas das luas
Não sei o seu nome
Nem de onde vem
Passa por todos
Não conhece ninguém
Sinto sua dor
De louco da cidade
Criatura sem dono
Em tão tenra idade
Com ele me identifico
Na mais cruel verdade
Dos meus dias de loucura
Na minha insana idade

Louco de fome

E lá estava o louco
E a fome
O louco de fome
Comia o lixo
O lixo da rua
A rua dos homens
Os homens do mundo
O mundo dos loucos
Dos loucos de fome

Cavalgada

Vou cavalgar
Sair sem destino
Emaranhar nas matas
Dos meus desatinos
No meu corcel branco
Para sempre partirei
Não deixarei vestígios
Nos solos onde andarei
Mas se um dia eu voltar
Meu corcel virá comigo
Pois na minha cavalgada
Foi ele meu único amigo

O mar

O mar é imenso
É pedaço do oceano
O mar é mistério
Imerge meu desengano
É profundeza escura
Onde habitam desconhecidos
Meus ontens e amanhãs
Flagela meu eu sofrido
O mar também é bálsamo
E cura minhas feridas
Quando nele navego
Buscado enseadas perdidas

Bolhinhas

Lata com espuma
Canudo de mamão
Pequenina eu soprava
Bolhinhas de sabão
O vento vinha morno
Soprando ele varria
Bolhinhas coloridas
Pedaços de alegria
Contente eu olhava
As bolhinhas subindo
Umas se espocavam
Outras iam sumindo
Era um festival
Leves bolhas coloridas
Alegria tão passageira
Infância já perdida
Lata com espuma
Canudo de mamão
Onde andarão vocês
Bolhinhas de sabão

Meu anjo

Quando criança
Em mim morou um anjo
Eu cresci
E num mundo de tormentos
Por mim passaram ventos
E meu anjo se foi
Hoje sou adulta
Meu corpo ficou vazio
Fiquei com minh’alma oca
Sem meu anjo criança
Que sem dizer o porquê
Sem dizer adeus...
Partiu

Cenas

No passeio, num anseio
A mulher me estende a mão
Caminhando no compasso
Vencia-me o cansaço
Das cenas tão iguais
Da noite fria
Do passeio-cama
Onde a mulher dormiria
Passei, escutei
Um pedido, uma súplica
Perdoei-me Deus
Por negar
Por seguir sem parar
É que sou humana
Também mendigo:
Vida

Ânsia

Esta vontade de ser
O que não fui
E talvez já seja
Mas a ansiedade é tanta
Que me perdi
Sem saber se já sou

Desgosto

Há dias em que não quero
Ser gente nem bicho
Ter vontade ou preguiça
Ter orgulho nem capricho
Há dias em que só quero
Sentar e ficar sozinha
Ver o vento me levar
Qual folha bem sequinha

Amigo

(Para Roberto)

Amigo que fica comigo
Se não vou
Amigo que não chora comigo
Pra não ser maior minha dor
Amigo que nunca me disse não
Que sempre me perdoou
Amigo que segue comigo
Na alegria e na dor

Morrer

Morrer é ter medo de si

Busca

Voo pelos ares
Singro pelos mares
Não estou
Fito o horizonte
Tento lá me ver
Me encontro em você

Tentativa

Já tentei ser flor
Já quis ser o amor
Imaginei-me sendo vida
Um adeus, uma despedida
Já tentei ser o tudo
Ser o nada consegui
Me perdi no vazio
Sem saber se vivi

No céu

No céu passou
Um avião e um pássaro
Para o avião veloz
As crianças olharam e fugiram
Para o pássaro pequenino
Olharam e sorriram
O avião passou veloz
Deixando fumaça
O pássaro permaneceu
No ar, bailando com graça

Aurora II

Nunca mais vi o sol
Dourando minhas manhãs
É que chega a maturidade
E, pela ordem natural das coisas,
Tem que colorir os meus poentes

Aurora I

Fraca neblina
No resto da madrugada
Leves rumores
De recente despertar
Punhal dourado
É o raio do sol
Que assassina a noite
Numa morte temporária
Num crime necessário
E o dia nasce
Sorrindo